31.12.03



BOM ANO PARA MIM

Meu absurdo e intolerável modo de estar: queria dizer-te que as árvores de fruto estão carregadas e que as mulheres da minha vida se ausentam sempre que eu me aproximo. Qual é a relação, perguntas tu, provocador, insidioso, de arrogância lenta. Digo-te que não sei. As árvores estão entre a terra o céu, como as minhas mulheres. A faculdade do movimento diferencia-as, parece-me. Umas dispõem-se e outras nim. Eu? Eu danço com a rainha do jazz entre as árvores e o céu que vislumbro quando penso nos beijos cheios do amor que trepida. Não me distinguindo; tolerando-me apenas porque há amanhãs que desconheço.

20.12.03



BEM VINDA



15.12.03



MAGNUM MAGNIFICAES

Um clima psico tropical é um drama
de têmpora mental
tal como tu és uma criança
de fundo letal e eu vento
me arrisco e desvio do mal
que escolho ao bem que prefiro.

9.12.03



VENHAM TODOS, VENHAM



6.12.03



SEI LÁ



 

eu gosto muito de tu às vezes não sabes

que eu quero que tu te fodas e eu também

às vezes não

 





(sem data)

Ai aquilo que eu te amo não é deste mundo
não é sequer de um mundo que me seja próximo
ai aquilo que eu te desejo la la la

Ai ai

Ai

Pum!

4.12.03



O PROJECTO REQUIEM

Um dia atrás do outro faz do mesmo
um carro à frente dum gajo

inadvertidamente

Baralha-se três vezes
Depois vê-se



OS NOSSOS NÓS

O frio desata os nós que fomos dando sem sabermos
que os nós que nós demos são se quisermos
os nós que desatarmos.

(Esfregar as mãos; Roçar os pés)

25.11.03



DISSO

Do acordo no calor de olhar o detalhe
do sorriso na voz de benefício ao sorriso
de olhar o afecto num desvio de fim



EM SILÊNCIO

Correr célere por entre os interstícios noctívagos e divagar pelos delírios que atordoam – dói tudo quando o cansaço é uma manhã lenta e difusa. Encostar-me às paredes nuas e frias e permitir o esquecimento relativo que se alimenta do silêncio que inauguro. Tactear o espanto e não dizer nada.

20.11.03



FRÁGIL

A senhora não se lembrava onde morava. Repetia baixinho lamentos discretos. Os cabelos brancos, soltos, escreviam cartas às primas afastadas porque sim. As mãos espantosamente delicadas susurravam aos pequenos histórias da aldeia dos avós. Quando me olhou não disse Ernesto, vai pró campo que o teu pai precisa de ti. Também não era preciso. Fui a correr. E a chorar.

31.10.03



VOILÁ

E da chuva irrompe a etérea leveza: o júbilo refeito e dançante.

21.10.03



ESCREVERÁ

Arruma a saia e diz o que ainda não dissera toda a tarde.



DECRETO MAS POUCO

Pára o automóvel azul claro no semáforo que logo ali se incendeia: o rubor. Mais à frente, interstício achocolatado e cigarro abotoam-se. Envolve toda esta dificuldade um tempo que se faz caído. Na luminosidade. No cantinho. Um must.

10.10.03



ENTENDIMENTO

à menina em paris

Podia dizer que me lembro bem dos beijos que nunca demos. Mas não, vou antes falar-te do entendimento, conceito tão do agrado dum grego cujo nome me não ocorre. O entendimento é bom. Gosta-se. Há pouco pensei o seguinte: moí­do mas mais feliz! A moagem é um processo secular. Envolve todas as lágrimas que juntarmos e todos os saberes que juntarmos e todos os beijos que nunca dermos, e depois, como que por milagre, olha-se mais uns segundos apenas para o corpo que nos está defronte e apetece-nos de imediato um abraço que traga um aperto nos olhos bem abertos mas fehados e solenes.

O café está com poucas pessoas. Fala-se sobre assuntos já ocorridos e sobre assuntos ainda não ocorridos. Sinto a falta de qualquer coisa. Olho para o meu lado esquerdo e vejo-te e vejo que estás linda, não me surpreende a surpresa que me causas sempre e depois pronto embarco rumo à  cidade dos edifí­cios que ornamentam os cantinhos da minha memória desde que me conheço e então inspiro e percebo que sim, é isto.

4.10.03



JOHNNY MEETS COMMY

Johnny não é Jonhy. E o entardecer às vezes esgota a pinta e pisca o olho mas não se repara. Quando se repara não se pega num cigarro nem se arrisca olhar para o lado. Em Paris as canetas mais gastas do Johnny encontram-se com os devaneios do amigo fictí­cio do meu irmão mais novo, o Comi, ou será que sempre foi Commy? Uma maçã amarela mais o Solnado num fim de tarde à  beira-mar. Falam sobre o azul.

23.9.03



A PROPÓSITO

Hoje encontrei um berlinde no saldanha.
Era o mais lindo de todos: brilhava
como uma manhã irrequieta.
Deixei-o estar no mesmo cantinho.
E disse baixinho: agora és meu.

21.9.03



CARTA A UM PESCOÇO ESSENCIAL

Foi nessa tarde que aconteceu ter-me percebido no futuro. Tinha a idade dos pássaros nos dias da poesia amanhecida, tinha as noites nas profundezas das dúvidas arrumadas em personagens incertas. Cuidava dos perigos com carinho, lavado e de barba feita. Viajante de mim.

Estava um dia claro, a luz parecia caída em golfadas lentas, entorpecidas, desmaiadas. O calor não se ouve: é insidioso, pleno de lamúrias. Julgo que tinha sede. Não fora teres-me visto e olhado e te ter visto e percebido que nos víramos a sério, um ao outro, num instante quase demorado, e diria que caía. Assim, fui apenas levando-me sem ter local aonde ir ou assunto que tratar. Tinha-te em mim e só essa visão importava.

Curiosamente foi tudo muito rápido, percebo-o agora. Saltei um pedaço de merda de cão e concentrei nessa impulsão muscular derradeira os esforços das palavras e dos arrepios. Recordo-me de não ter chegado a cair, de não ter chegado a perceber. Penso que adormeci ou me esqueci de viver, nesse segundo. Desde então pairo resolvido nos momentos seguintes aos minutos que ainda não aconteceram, ou então já, não sei bem. É nesse tempo sem tempo que tudo acontece. Abrem-se os olhos e convida-se alguém para dançar. Depois do primeiro beijo, normalmente, surge o transistor do Alba a anunciar sinfonias. Olham-se os olhos que nos olham e brilham e já está.

15.9.03



JOHNNY NATE - party over

Em frente ao silêncio descubro-me nu. Uma única luz envolve a sala que agora tem outra vez música. Começou de repente, muito lentamente, e eu agradeço que assim tenha sido. O Jonhy partyu-se. Ao vê-lo cair e estrebuchar apenas ligeiramente apeteceu-me sorrir. Sorri. Uma mulher de vestido castanho aproximou-se. Já tens companhia para férias? Eu disse-lhe que ia ali e já vinha. Quando vim ela não estava.

4.9.03



JOHNNY NATE - party 4

Café com cheirinho, senhor Jonhy? Que sim, era poeta:

eu agora flutuo nas águas
dos murmúrios essenciais
e fumo nos hiatos de sol
as inteirezas dos demais

eu agora cresço à sombra
do riso das meninas que tais
e permito à vetusta ligeireza
um pedaço de nunca mais

eu agora sossego a argúcia
e não me celebro no lodo do cais
vou e venho ao sabor da minúcia
das únicas palavras vitais




JOHNNY NATE - party 3

Era uma manhã de uma quarta ou quinta e a pastelaria estava preenchida. Adolescentes e velhotes. Olhei em volta. Estaria a falar para mim? Enquanto arrumo o isqueiro percebo que nada seria como antes. O homem já me escolhera. Eu sou o Jonhy, disse. Quero tomar um café contigo e contar-te a minha vida. Não disse absolutamente nada. Fomos.

3.9.03



JOHNNY NATE - party 2

Isto foi o que o gajo me disse depois

não sei se me sinto bem quando faço as coisas bem feitas
como não sei se adoro esta música só porque a adoro
enfim quero mais jardins para poder pracear
têm que ter uns quantos quatro bancos
não sei se me sente se só respire
fundo e olhe o que não vira
e então pronto suspire
que já tá

31.8.03



JOHNNY NATE - party 1

Dia um de Jonhy Nate. Apareceu na minha vida de repente. Um autocarro e uma travagem brusca. Ele era o autocarro. Bem, isto só perceberia mais tarde. Naquele momento era apenas um homem a pedir-me lume. Dei-lhe e..

27.8.03



ACABARAM AS FÉRIAS

Hoje mudei-me para a sala. Instável é uma palavra. Bolinha branca entre a mão e o céu num filme a preto e branco. A branca da bolinha e o branco do filme, em dizeres de sono, estreitam verificações. Ou então intranquilo.

18.8.03



OS DIAS LONGOS

I

Esta história é muito séria. Primeiro porque é verdadeira e incrível e isso, hoje em dia, parece ser muito importante. Depois porque tem a ver com o tempo a andar para trás. Esta é a história do homem de cinquenta e nove anos que decidiu viver um dia de cada vez. É a história dos homens que verificam o peso das coisas. Este, o nosso homem, tinha vontade de ir ao banco.

O que este homem desconhecia, aquilo que afinal todos desconhecíamos, era que as adversidades, montículos de nada em cima de coisa nenhuma, se podiam facilmente ultrapassar. Vai perceber isto mais tarde. Não imaginou nunca foi o verdadeiro alcance do que lhe estava para acontecer. Quando se olhava ao espelho sentia-se relativamente bem.

Aconteceu que cada dia da sua vida, cada dia de novo vivido, passou a ser um dia… a menos. Tal sucedimento não foi imediatamente percepcionado. Os três primeiros anos desde que tomara a decisão de que vos falo, foram os seus melhores anos: “Viver um dia de cada vez”. Não se sentia envelhecer. Aliás, isso nem sequer lhe passava pela cabeça. Continuava com as velhas rugas de sempre, é certo, mas não se lembrava de ter adquirido alguma nova. O estômago, esse órgão tão incomodado e sensível, parecia tolerar melhor alguns excessos. Olhava as folhas do jornal a seguir ao almoço e não adormecia quase de imediato. Só se lhe apetecesse. Andou nisto sem se questionar acerca da sua nova vida. Digo bem: da sua nova vida.

Façamos uma breve apreciação ao dia inicial. No dia dezanove de Julho o nosso homem foi ao banco. Há já seis horas que o tempo invertera a sua ordem natural. Cartão de crédito: Edgar Pereira. Disposição: Boa. No trânsito ouvira Miles Davis. Nem mau tempo nem muita gente na fila. Pensou que era chegada a altura de fazer uma pequena loucura. Há anos que pensava comprar uma casa de férias na praia. Naquele dia, o mesmo em que tudo começou, Edgar iria tratar dos últimos papéis. Cento e cinquenta metros quadrados de um piso só, a cem metros do mar. Ia comprar tempo, costumava dizer aos amigos.

Edgar era um homem muito charmoso. Tinha um nariz relativamente grande e a face perfeitamente adequada ao tamanho de tudo o resto. Também os seus lábios e pele haviam sido comentados na sua juventude, entre as mulheres. Vestia com distinção e algum arrojo, combinação que o demarcava dos demais. Ao atravessar a rua não reparou na ex-mulher, do outro lado da marginal. Não quis saber das horas no momento em que ajeitou o relógio e sorriu. O movimento na passadeira para os peões pareceu-lhe igual aos dos demais dias. Não olhou para o lado.

Ela reparou nele, claro. Um determinado brilho nos olhos. Ângela Pereira. Camisa desabotoada. Saia pelos joelhos. Quarenta e tal de subtileza e fascínio. Preguiçou o passo e viu Edgar entrar no banco. Ela também lá ia. Tinha recebido umas massas e precisava de depositá-las. Entrou ele primeiro que ela. Ângela fingiu uma dificuldade para poder tropeçar em Edgar. Um braço estendido, a roupa amarfanhada, faça o favor de desculpar, ah! és tu pá, só me falta apareceres na sopa – eis a sequência do acidental encontro. Que não, não leccionava mais, não mais encaminharia os putos para as suas certezas e para as suas incertezas. Agora pinto. Ainda não viste a minha exposição?

II

Edgar gostava de arrumar pequenos papéis por cima dos antigos problemas e objectos do seu escritório. Gostava muito de escrever. Actualmente desassossegava-se numa curiosa lista de prazeres. Só muito depois de se afastar de Ângela pensou que teria que acrescentar à sua inacabada lista os encontros repentinos com as ex-mulheres. Naquele momento apenas apreciou a frescura da sua ex., dissimulando a vontade de a convidar para irem beber um copo. Ângela sempre fora mais expedita. E foi já em frente de um Martini Bianco que a nossa quarentona lhe falou de Sérgio.

Sérgio Pais não andava feliz. Conhecera Ângela num parque de estacionamento. Chorava em silêncio olhando o automóvel parado. Ângela reparara nas lágrimas que saltavam daqueles olhos grandes e azuis. O seu carro estava em frente ao dele. Saiu do carro e convidou-o a tomar um chá no café em frente. Sérgio estendeu a mão esquerda e segurou a mão de Ângela. Estiveram assim trinta segundos sem falarem de absolutamente nada. Depois foram conversar. «Isto foi há três meses e desde então é o meu melhor amigo.»

Alguns dias depois (antes?) da conversa entre o nosso casal, Edgar ouve falar de novo do tal amigo de Ângela. Era vizinho da sua última conquista, Daniela, e pelos vistos andava a inquietar todo o prédio. Que por vezes dormia no jardim, que se passeava pelos corredores, de cuecas, sussurrando poemas de Al Berto e Pessoa, que presenteava as crianças com cantilenas improvisadas e anarcas, enfim, uma data de posturas pouco condizentes. Mais um tolinho para a Ângela tratar, pensou, sorridente, Edgar Pereira.

Recordam-se de vos falar que para o nosso homem, o tempo estava a andar para trás? Pois bem, dois anos e meio após os acontecimentos mencionados, encontrava-se Edgar na sua nova casa bebericando um Gin Tónico quando aparece Ângela. Haviam combinado almoçar uns robalitos grelhados. Ângela ficou estupefacta com o aspecto de Edgar. Eu ainda me apaixono outra vez por este gajo, pensou enquanto lhe disse com sinceridade que lhe parecia óptimo. Edgar sentia-se de facto óptimo. Perguntou pelas filhas e percebeu que nem tudo ia bem.

O maluquinho estava a viver com a ex-mulher e as filhas! Os robalos quase saltaram dos pratos. O cenário de paz absoluta conhecera um revés. Mas o que é que te deu na cabeça? Não deves estar boa! Só ao final do dia se decidiu a conhecer Sérgio. Ângela contara-lhe que o seu namorado estava convencido que estava a rejuvenescer, que houvera um qualquer clic de que não se apercebera e que a partir daí era só saúde. Edgar já andava ensimesmado com o seu próprio estado. Porra, queres ver que os gajos que passam pelas mãos desta gaja ficam todos mais novos? Pronto! Iria visitar as filhas e conhecer o Sérgio. Desculpar a pressa não fazer mal é a alma dos nossos negócios. Ela ainda trabalhava. Directora de revista literária. Tanta coisa que eu tinha a dizer Eu também Por favor aparece mesmo Sim claro que vou disseram os pares de olhos àvidos uns dos outros.

O jantar começou formal e acabou infernal. Sérgio era realmente louco e o factor paternal sobrepôs-se claramente ao factor este gajo parece que tem vinte anos. Que nem pensar, as filhas iam imediatamente para sua casa. Não se discute, quando quiserem apareçam por lá, faço um peixinho delicioso, não é querida?, provocou. Tentava, à sua forma, satisfazer diferentes objectivos com uma só decisão. Ah! Que bem me sinto! Se este gajo se arma em parvo vamos ter merda. Isto numa contracção de maxilar muito característica do nosso «jovem» e que constituía a sua arma de sedução mais eficaz.

Uma semana depois lá estavam os cinco, os ainda adultos e as crianças. O tempo ameaçava chuva pelo que Edgar optou por uma carilada de frango. Agora pode também supor-se que o picante da refeição possa ter ajudado a elevar os calores emocionais. Edgar de camisa azul impecavelmente desarranjada e barbear perfeito, meu deus como este homem está bonito! Sérgio de t-shirt preta larga e de calções, este gajo não bate bem, com este frio... Os dois rebolando pelo chão aos tabefes um no outro. Não houve murros, ou chutos ou mordidelas. Só chapada velha. Seria um código de conduta entre os que sofriam de mal tão generoso?

O que resta desta história é abreviado: Ângela e filhas de malas aviadas para casa de campo dos pais. Haveria outros gajos na vida da bela Ângela Pereira. As filhas cresceriam pujantes e desiquilibradas. Edgar e Sérgio espatifados em antidepressivos e ataques súbitos de paixão adolescente. Era vê-los nas discotecas in a meter paleio com o sexo oposto. Foram anos loucos aqueles. Depois cansaram-se e foram preparar-se para o nascimento, o longo mundo do desejo e dos gestos silenciosos. Nunca se ouviu falar nesta história nos meios de comunicação social. Eu não contei a ninguém! E não conto! Pim.