28.2.04



cem anos mais setenta e um anos, tanto

(quando o barulho do mar não me deixa dormir
encosto a cabeça na areia suave
amanho almofada joelho justeza
e deixo-me ir)

às vezes tenho frio durante a noite
como se me destapassem me despissem
e dissessem para não dormir

acaricio a perna contra os lençóis de vento miudinho
(lentamente, não se o sujeite a si)
penso em palavras em sons de palavras agudas
vibrantes vitais

e tal sucedimento antigo e recente
que se impile, se arrole, se então
pois então

27.2.04



um insecto engavetado

Eu sou o insecto que estremece
na teia que teces como ninguém.
Sou eu que ansiosamente aguardo
a voracidade que me é merecida.
Nesta parte de mim que desconheces
teço as conjecturas várias que se me põem.
Daí que só o brilho intenso do teu olhar
afague este desorientado simulacro,
como se me percebesses...
Daí viver em constante fervilhar,
teorizando sobre os estímulos corporais
que em resposta à tua presença acontecem.
Manifestando obsessivamente inquietudes,
querendo perceber o que de mim percepcionas.
Sem ter tempo para ser simples.
Para te dar um beijo.
Gostando inteiramente de todos os teus pedaços...

23.2.04



da gaveta

há quem cante no meio da multidão
e quem no meio da multidão recuse
a ideia de multidão que acuse
a verdadeira solidão que ocorre

17.2.04



man in chair, lucien freud





isto na sequência volteante de mim destituído de sentido
sentado ou despido ou isto assim razante ou pois
vacas nem polícias não coiso e tal que é
que nem sei se durmo hoje e ponto

14.2.04



o amparo da maria joão absolutamente necessário e acertado revela-me a dimensão do que ocorre com toda a dificuldade, na minha vida, por estes dias...



um recadinho

este ano está-me difícil, não sei bem que conjugações aqui se justificam, mas este está a ser um ano muito último, de dores últimas, percebem?, o elevador ascende e a música termina, estão a ver?, o acidentado diz que faz que mas ao fim e ao que nada soçobra que é como quem diz que estou numa grande enrascada, palavra do caralças, sim, foi caralças aquilo que eu quis dizer

10.2.04



(ao menino sebastião)


MONTE DA UTA


eu nesta mesa de papéis dispersos e o vento lá fora e o monte grande quieto
eu atafulhado de perspectivas e o monte exclusivo, singular
eu confuso e o monte sem fusos, omnipresente
eu parado no movimento dos neurónios e o monte no pedestal autoritário
eu climatérico e o monte simplesmente
eu monte e o monte colérico quem pensas tu que és
e eu no meu lugar de novo
nesta mesa de papéis dispersos e o vento lá fora
e o monte agigantado e eu vocacionado
para monte nos papéis pelo menos desenhado