21.9.03



CARTA A UM PESCOÇO ESSENCIAL

Foi nessa tarde que aconteceu ter-me percebido no futuro. Tinha a idade dos pássaros nos dias da poesia amanhecida, tinha as noites nas profundezas das dúvidas arrumadas em personagens incertas. Cuidava dos perigos com carinho, lavado e de barba feita. Viajante de mim.

Estava um dia claro, a luz parecia caída em golfadas lentas, entorpecidas, desmaiadas. O calor não se ouve: é insidioso, pleno de lamúrias. Julgo que tinha sede. Não fora teres-me visto e olhado e te ter visto e percebido que nos víramos a sério, um ao outro, num instante quase demorado, e diria que caía. Assim, fui apenas levando-me sem ter local aonde ir ou assunto que tratar. Tinha-te em mim e só essa visão importava.

Curiosamente foi tudo muito rápido, percebo-o agora. Saltei um pedaço de merda de cão e concentrei nessa impulsão muscular derradeira os esforços das palavras e dos arrepios. Recordo-me de não ter chegado a cair, de não ter chegado a perceber. Penso que adormeci ou me esqueci de viver, nesse segundo. Desde então pairo resolvido nos momentos seguintes aos minutos que ainda não aconteceram, ou então já, não sei bem. É nesse tempo sem tempo que tudo acontece. Abrem-se os olhos e convida-se alguém para dançar. Depois do primeiro beijo, normalmente, surge o transistor do Alba a anunciar sinfonias. Olham-se os olhos que nos olham e brilham e já está.

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